Tomados de paixão cega e surda, mas não muda, um dia dois pombinhos chegam à conclusão de que foram feitos um para o outro. E que é hora de dividir o mesmo teto. Como diz o ditado, a lua-de-mel não vai durar mais que um pacote de sal. Como se sabe, sal se usa um pouquinho por dia, e a doçura dos primeiros dias logo vai ter sabor de pimenta malagueta.
Um quilo de sal é a medida exata para descobrir que a prince- sinha tem humor de bruxa quando acorda. E que, esparramado no sofá depois do almoço de domingo, o príncipe bem que lembra um sapo.
Antes um ninho de amor, a casa logo parece pequena para dois. A começar pela cama. Ele dorme de pernas e braços abertos. Ela, encolhida no espaço que sobra. Ele sonha com um ar condicionado. Ela tem os pés gelados. Quando faz frio, ele puxa o cobertor. Ela se enrosca nele. Ele diz que não consegue respirar. Ela quer discutir a relação. Ele vira do outro lado. E ronca.
De manhã trombam no banheiro. Os dois disputam o direito de usar o chuveiro primeiro. Ela tem chiliques porque ele joga a toalha de banho no chão. Ele tem nojo de encontrar fios de cabelo no sabonete. Ela depila as pernas e estraga o aparelho de barbear dele. Ele detona o xampu predileto dela. Ela ocupa a pia inteira com potes de creme. Ele deixa a pasta de dentes aberta.
Ele lê jornal enquanto toma o café (ela gosta fraco; ele, forte). Ela afasta o jornal de cima do pão. Ele tampa o pote de margarina assim que ela retira a faca. Ela só compra queijo branco; ele prefere amarelo.
Ela esquece as luzes acesas. Ele apaga todas as luzes da casa.
Ele gasta dinheiro com bobagens. Por mais sapatos que compre, ela nunca tem um que combina com o vestido.
Na direção, ele vira piloto de fórmula 1. Cola no carro da frente, acelera quando vê que o farol vai virar vermelho. Ela reclama do excesso de confiança dele. Ele responde que, se não confia nele, melhor dirigir ela mesma. Quando se perde, ele jamais admite perguntar o caminho. E, se a estrada acaba num riacho no meio da Mata Atlântica, ela cutuca; eu bem que avisei.
Ela gosta de novela. Ele também, mas jura que não. Prefere esporte. Não perde um jogo de futebol. Principalmente se for Copa do Mundo. Ela resmunga que ele assiste até partida entre Trinidad e Tobago. Ele diz que ela não entende nada: Trinidad e Tobago são um país só.
Ele nunca percebe quando ela corta o cabelo. Só lembra de elogiar o vestido quando ela vai sair sozinha. Reclama se ela chega em casa mais tarde do que ele. Não importa que horas sejam, ela sempre fecha a cara quando ele sai para tomar cerveja com os amigos.
Se vão ao cinema, ela prefere filmes de amor. Ele, de ação. Ela demora para se arrumar. Ele não gosta de chegar atrasado e faz plantão na porta do banheiro. Ela sai, mas volta porque esqueceu de passar perfume.
Ela prepara um jantar romântico para comemorar o aniversário de casamento. Ele esquece a data e telefona avisando que vai chegar tarde do trabalho. É o fim da linha. Os dois decidem que, diante de tantas incompatibilidades, é impossível continuar a viver juntos. Um faz a mala, outro concorda: é melhor assim.
A cama agora é grande demais. Ele sente falta daquele corpo macio enroscado no dele. Aspira fundo, buscando no ar o cheiro doce que só ela tem, mistura de pele, xampu, perfume e creme. Sorri, lembrando da indecisão dela diante do armário. Bobagem. Ela é linda de qualquer jeito. Lembra a ternura que sente quando ela chora no meio de um filme. De como consegue dar conta dos problemas pequenos e grandes. Do seu ar interessado quando ele conta uma história.
Sozinha no silêncio da noite, ela sente frio. Encosta a cabeça no travesseiro dele, que tem cheiro de loção e pasta de dentes. Sorri, lembrando do seu jeito engraçado de se esparramar na cama. De como fica bonito quando sai do banho enrolado na toalha. Do seu modo desajeitado de demonstrar ciúme. Da teimosia em insistir que está certo mesmo diante do erro mais óbvio. Da segurança do seu abraço.
Viver a dois não é fácil. Sozinho, menos ainda.
Lucia Sauerbronn – Jornalista.
Revista COOP outubro 2007