O cotidiano escolar por muito tempo foi visto como rotina. Porém, o que se passa na escola não é uma rotina. O conceito de rotinização é reducionista. Pais (2003) sugere a noção de “rotas do quotidiano” como caminhos denunciadores dos múltiplos meandros da vida social, que escapam às abstrações cientificistas de algumas teorias sociológicas.
Uma das motivações que me levou a escrever este breve artigo foi minha experiência de vida, como morador nascido e criado na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, e os próprios conflitos que vivencio na minha prática docente, as angústias que compartilho com os meus pares professores e professoras. Isso tem me impulsionado a tentar compreender as relações, hábitos e valores que são formados a partir de sociabilidades diferentes e até antagônicas às expectativas da escola. Almejo compreender as práticas dos alunos que têm seu comportamento informado, fora da escola, por ordens dos grupos que os submetem, enquanto moradores de favelas, a sociabilidades violentas. É importante ressaltar que tais grupos, não são só grupos criminosos, mas são propagadores de modelos identitários que informam os alunos e as alunas. Quando o traficante impõe uma sociabilidade violenta aos sujeitos que estão vivendo naquele espaço, todos passam a ser vítimas dessa situação em função do medo que essa tirania impõe. Porém, quando os alunos criam identidades com essa sociabilidade violenta temos, aí, uma questão sociológica e pedagógica relevante e que merece ser problematizada.
Partindo dessa premissa, podemos fazer uma articulação com o cotidiano da escola e pensá-lo não mais como rotinas e submissões às prescrições curriculares, mas como rotas que possibilitam a desinvisibilização de redes de sentidos e de práticas curriculares não previstas a priori.
Nesse sentido, o que me interessa compreender nessas tessituras-rupturas que estou propondo como exercício de reflexão e tensionamento teórico, não é somente identificar as redes sociais, de pessoas, que se constituem também no cotidiano da escola, mas, compreender a lógica das redes de sentidos tecidas pelos alunos(as), moradores de favelas, partir das subversões e dos usos que eles fazem com o que é proposto pela escola, como conteúdos-saberes importantes para a vida deles. É aí que eu vejo uma ruptura importante dos estudos nos/dos/com os cotidianos da escola com as perspectivas antropológicas apresentadas neste texto. A ideia de se pensar a lógica das redes de sentidos amplia muito a possibilidade de compreensão do que se passa no cotidiano escolar e demonstra que realmente há para além de um limite, uma complexidade ao colocarmos as noções de redes de pessoas como ponto de partida.
A guisa de exemplo vou relatar uma situação ocorrida na escola pública em que trabalho, que evidencia a potência da noção de redes de sentidos e a necessidade de compreensão das lógicas em jogo. Recebemos um aluno no início do ano, oriundo de uma das favelas das adjacências da escola, cuja simples presença transformava a dinâmica do cotidiano escolar. Quando ele estava na escola, os demais alunos, principalmente os da turma dele (mas não somente eles), na qual eu era o professor, prestavam certa reverência submetendo-se às suas “ordens” (que, às vezes, eram dadas só com um olhar) e o reconhecia como a principal autoridade da sala. Alguns pais de outros alunos comunicaram à diretora que se tratava de um menino que estava envolvido com o tráfico de drogas na favela. A diretora me comunicou, e passamos a observá-lo com mais atenção. Pude perceber que a sua “liderança” não vinha de nenhuma característica comumente identificada em alguns alunos “líderes” da escola. A “liderança” do aluno em questão estava baseada na identificação e no reconhecimento, por parte dos alunos e alunas da escola, de um suposto posicionamento numa estrutura de poder fora da escola, alheia às suas normas e padrões. A hierarquia professor-aluno, que é um elemento fundante no modelo de escola moderna, passou a ser desrespeitada e o referido aluno passou a impor uma outra lógica de sociabilidade na escola. Passou a tentar intimidar o professor, e outras pessoas da escola, inclusive os alunos, através de ameaças à integridade física.
A partir dessa experiência narrada, vivida com o cotidiano da escola, podemos tecer outras malhas de uma mesma rede, estabelecendo um diálogo com o Antropólogo Becker (1973), levantando a seguintes indagações: qual o sentido da noção de hierarquias que passa a ser tecida no-com o cotidiano dessa escola? Ou ainda, de qual ponto de vista tentaremos compreender a lógica dessas ações? E o que faremos a partir daí, corroboraremos com as acusações de que tais alunos são transgressores, desviados, bandidos, ou subversivos? Qual a rede de sentidos que nós, professores e professoras, estamos tecendo nos/com esses cotidianos da escola?
Para não concluir…
Ao fazermos um mergulho no universo da escola é possível perceber os sinais de resistências, transgressões e outros usos das regras impostas. Percebemos que os alunos (as) enredados (as) aos seus cotidianos, transformam a sua realidade fazendo usos táticos das regras impostas (CERTEAU, 1994), tecendo conhecimentos que tenham sentido para e nas suas redes de saberes. Por exemplo, os estudantes moradores de favelas dão o sentido que lhes convém às regras e ao que é ensinado na escola. Assim, fazem uso tático (CERTEAU, 1994) dos conhecimentos prescritivos que lhes são impostos de acordo com as situações que se defrontam dentro e fora da escola. E com os seus saberes/fazeres forjados nos cotidianos (dos seus múltiplos espaços-tempos de pertencimentos), constroem suas casas, seus espaços sociais, suas vidas dentro e fora da favela. Modificam a escola que, vinculada aos saberes dominantes, representante de um saber supostamente superior, dificilmente abre espaços para as culturas “inferiores”. Esses espaços são abertos, geralmente, pelas transgressões e desvios e as táticas, como nos fala Certeau (1994). São nesses lugares não autorizados da escola que moradores de favelas enredam seus conhecimentos, valores e as suas estratégias de sobrevivência, aos currículos praticados na escola . É comum ouvirmos de alguns profissionais da educação, que funk é coisa de bandidos e que Hip-Hop faz apologia disso ou daquilo, embora sejam apenas manifestações culturais legítimas de determinados grupos sociais.
Há muitos outros exemplos de tentativas de silenciamentos das práticas e valores sociais e culturais dessas populações pela escola, mas, também há muitos relatos entre os alunos das táticas usadas para subverter as ordens impostas. Por isso, faz necessário um mergulho no cotidiano da escola, com todos os sentidos (ALVES, 2001) para não somente enxergarmos, mas, ouvirmos, tocarmos, cheirarmos, sentirmos e, assim, tentar compreender melhor essas lógicas tecidas com o cotidiano escolar.
Referências bibliográficas
ALVES, N. e OLIVEIRA, I. B. Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
BECKER, H. S. A escola de Chicago. In: Mana: estudos de antropologia social, vol. 2, n. 2, out., 1993.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 2. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994.
PAIS, J. M. Vida cotidiana: enigmas e revelações. São Paulo: Cortez, 2003.
Rodrigo Torquato – É doutor em Educação pela UFF, amigo do Cada Dia, morador da Rocinha.