Os debates sobre as questões morais ocupam um lugar de destaque no mundo de hoje. Os jornais diários, as revistas semanais, os livros, os filmes, os meios de comunicação em geral veiculam situações e problemas que atingem diretamente a dimensão ética da vida humana. Isto se deve às grandes transformações políticas, sociais, econômicas, culturais e científicas que impregnam atualmente a sociedade inteira, estabelecendo discussões permanentes em torno de questões inovadoras e cada vez mais complexas. Também se deve, porém, a um vigoroso ressurgimento da reflexão filosófica sobre as ações concretas de indivíduos e grupos, sendo a Ética uma das principais disciplinas da filosofia, um tema marcante em todos os sistemas tradicionais de pensamento. Problemas morais relacionados ao aborto, à eutanásia, à condição da mulher na família e na sociedade, à injusta repartição das riquezas entre pessoas e nações, ao desequilíbrio ecológico, à intolerância diante de modos diversos de vida, à corrupção entre agentes políticos e empresariais, ao potencial destrutivo da tecnologia moderna, entre outros, constituem indagações que certamente extrapolam os limites dos saberes especializados. Mas que acabam suscitando o reconhecimento por parte das teorias morais, tornando imperioso o relançamento do debate no seio da própria filosofia.
Quando se fala em reabilitação ou retomada da ética filosófica parte-se da constatação de um certo declínio deste campo, e mesmo da filosofia prática em geral, em virtude do acentuado predomínio da chamada racionalidade instrumental em nossa cultura contemporânea. A situação provocou, por um período relativamente extenso, de fins do Século XIX a meados do Século XX, uma espécie de evacuação de problemas morais fundamentais, lançados ao âmbito das escolhas pessoais, das preferências subjetivas e, em contraposição, mas em curiosa harmonia, ao domínio das decisões autoritárias, do objetivismo asséptico. Desta forma, o relativismo e o perspectivismo, por um lado, o positivismo e o legalismo, por outro, irmanaram-se, de forma latente e paradoxal, na desqualificação da ética, fato que só contribuiu para o avanço do mais grosseiro individualismo e do mais cínico anti-humanismo. Entretanto, os problemas filosóficos não resolvidos, pela simples razão de persistirem como problemas, embora retomados à luz de transformações tanto teóricas quanto práticas, reclamam soluções críticas, sempre sujeitas, é claro, ao desacordo, em razão do falibilismo inerente a qualquer empreendimento intelectual.
Do que trata a Ética? De todas as disciplinas da filosofia, ela é certamente a mais concreta e a mais acessível. Isto porque a Ética trata essencialmente da ação, sendo ela uma reflexão sobre um aspecto fundamental da ação humana que designamos habitualmente pelo termo moral. A moral diz respeito ao cuidado de tomar a boa decisão, de praticar a boa ação, apelando assim a uma distinção essencial, feita pelos seres humanos, entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado. Não resta dúvida que a moralidade é um traço capital que diferencia o ser humano dos outros animais, podendo ser considerada uma das dimensões constitutivas de nossa humanidade. A Ética lida, portanto, com questões do tipo: o que devo fazer? como devemos viver? o que torna uma ação correta? quais fins deveriam ser visados por nossas ações?, e assim por diante. Tais questões constituem o material bruto sobre o qual se debruçaram pensadores de diversos matizes, de tal modo que a Ética pode ser designada como uma reflexão filosófica ou uma teoria crítica sobre a moral. Indaga-se, contudo, se é preciso fazer uma diferença entre a ética e a moral. Certos filósofos tratam os dois termos como sinônimos. Outros privilegiam um, sem fornecer sentido preciso ao outro. Outros ainda, principalmente entre os autores contemporâneos, estabelecem uma distinção clara entre os dois, mas nem sempre sob a mesma ótica. Além de tudo, esses termos não são propriedade da filosofia e adquirem conotações variadas em outras áreas do conhecimento.
É comum recordar as origens grega e latina dos termos em questão. O termo “ética” deriva do grego ethos, que possui dois significados distintos, de acordo com a letra e breve ou longa utilizada na língua grega: por um lado, significa “hábito” quando iniciado com a letra “epsilon” (e); por outro lado, significa “caráter” quando iniciado com a letra “eta” (h). O vocábulo “moral”, por seu turno, deriva do latim mos, cujo plural mores significa “usos” ou “costumes”, significado que, de resto, não consegue traduzir a complexidade do termo grego originário. De qualquer modo, o “costume”, entendido como disposição habitual para agir de uma certa maneira, resultante da repetição constante dos mesmos atos, ou como um espaço propriamente humano pelo qual o mundo torna-se habitável por ser abrigo seguro e permanente, embora não natural e sempre mutável, pretende representar a dimensão básica do homem como um ser de relação, que se constitui através da interação com os outros em meio a uma luta constante pelo próprio reconhecimento.
Para além da querela terminológica, portanto, a moralidade é um fato intransponível de nossa condição humana, podendo mesmo ser designada como um sistema de proteção de seres vulneráveis, individuados pela via da socialização. Ela introduz em nossas ações ideias associadas a certa ordem superior de exigências, como as de dignidade e de respeito, que funcionam como critérios de avaliação e que explicam os sentimentos consecutivos de remorso e de vergonha perante uma falta cometida, mas também de indignação em face de um tratamento injusto ou desigual. Neste sentido, a conduta moral consiste em estabelecer uma hierarquia entre nossos diversos valores morais a fim de encontrar uma solução para os conflitos que podem surgir da oposição entre tais valores, que podem ser fins superiores (ou ideais de vida), propriedades de caráter (ou virtudes) e normas suscetíveis de respeito (ou deveres). Embora o mundo moderno seja tido como palco de uma profunda crise de valores após o desmoronamento da ordem tradicional, fundada em bases metafísicas e religiosas, é notória a persistência do chamado senso moral, atestado pela reabilitação da ética filosófica e pelos debates morais incontornáveis de nossa época. Aqui reside, a meu ver, o principal dilema da Ética moderna, que poderia inclusive explicar o interesse atual pelo tema.
O problema configurado na perda, ou pelo menos no descrédito amplo, de um fundamento transcendente e, por isso mesmo, absoluto, das regras morais, define o ponto de partida e os impasses da filosofia prática na modernidade. Os debates contemporâneos no campo da Ética, com efeito, giram em torno dessa problemática central, a partir da qual se perfilam diversas tendências que podem ser agrupadas, em regra geral, de acordo com a dupla herança kantiana e aristotélica, nas quais a moralidade é definida ora pelo ponto de vista deontológico do que se impõe como obrigatório, ora pela perspectiva teleológica do que é estimado bom. Contrapõe-se aqui o ideal de universalidade ao de particularidade, o objetivo de justificação teórica sistemática ao de sensibilidade por sabedorias e tradições locais, o individualismo metodológico à filiação comunitária do sentido e, last but not least, o ponto de vista da imparcialidade ao enraizamento na história. O que se nota, no fundo, é que a Ética defronta-se ainda hoje com o problema clássico da mediação entre a universalidade da reflexão e a singularidade concreta da ação moral, que constitui um dos traços permanentes da controvérsia fundamental acerca da unidade da razão prática. Neste sentido, o embate entre a perspectiva hegeliana da Sittlichkeit (moralidade objetiva ou “eticidade”) e o enfoque kantiano da Moralität (moralidade subjetiva ou apenas “moralidade”) ganha um contorno decisivo, pois as discussões contemporâneas no campo da filosofia moral giram ao redor desta polêmica que retoma a histórica problemática platônico-aristotélica sobre o ethos e sua ciência.
Na realidade, há um notável entrecruzamento das leituras, tornando perigosamente simplificadora qualquer tentativa de agrupamento em termos de tipologia. O panorama atual no campo da Ética demonstra que o debate em torno da universalidade dos princípios morais, e consequentemente sobre a legitimidade da democracia, tem alcançado uma força impressionante, e nele se vislumbra um problema que tem sido objeto de discussão permanente ao longo da história da filosofia ocidental: a relação entre os princípios universais de justiça e as concepções particulares do bem. Tal problema é constitutivo da razão prática e define o campo de possibilidade da própria ética filosófica numa era pós-metafísica. Contudo, e em que pese a difícil conciliação, “justiça” e “solidariedade” devem ser tomados como princípios complementares que se referem à mesma e única raiz da moral, correspondendo aos aspectos igualmente importantes dos direitos dos indivíduos e do bem da comunidade, aos quais estão vinculadas as exigências do igual respeito pelas pessoas e da responsabilidade solidária relacionada com os outros.
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Luiz Bernardo – Professor de Ética e Filosofia Política da UERJ, possui Pós-Doutorado pela Universite Catholique de Louvain, U.C.L., Louvain La Newe, Bélgica e pela State University of New York, S.U.N.Y., Albany, Estados Unidos.